Movimentos estranhos de satélites chineses confundem linha entre paz e provocação

O espaço é já um campo de batalha e a China está claramente a ganhar vantagem. Debaixo dos olhares dos norte-americanos, os satélites chineses estão a realizar manobras cada vez mais sofisticadas. Cresce, em Washington, a preocupação com a possibilidade de esses comportamentos orbitais darem a Pequim uma vantagem num conflito futuro.

Nuno Patrício - RTP /
Imagem criada por IA - RTP

Com tais exercícios “experimentais”, diz o Pentágono, as forças militares e de informações procuram soluções no sector comercial privado.

Prova disso é um documento apresentado pelo Comando de Sistemas Espaciais da Força Espacial à indústria, publicado em maio, que refere que “o Governo [norte-americano] tem uma necessidade crescente de consciencialização sobre o domínio espacial tático em órbita baixa da Terra”.

O documento destaca também a necessidade de “informações precisas e atualizadas” sobre as atividades de satélites estrangeiros.

Esta aproximação das Forças Armadas norte-americanas ao setor privado demonstra as preocupações com a mudança do equilíbrio estratégico no espaço.

Existe a consciência de que os Estados Unidos “controlam” as órbitas altas - cerca de 36 mil quilómetros de altitude - desde o início da era espacial, utilizando satélites para guiar sistemas militares bélicos, coordenar tropas e espiar alvos terrestres. Mas esta capacidade, como o crescente domínio chinês, pode estar em risco.A Órbita Terrestre Alta (HEO) é uma órbita de satélite localizada a 35.786 quilómetros (22.236 milhas) da superfície da Terra ou além dela. Nesta altitude, os satélites localizam-se num "ponto ideal" onde o período orbital coincide com a rotação da Terra, resultando no que é conhecido como órbita geoestacionária.

É já do conhecimento dos norte-americanos que a China está a criar e a implementar aos poucos, no espaço, satélites que podem mover-se, inspecionar outras naves espaciais e até rebocá-las.

Mas não só. Pequim também está a desenvolver instrumentos considerados bélicos que podem bloquear ou cegar satélites.

"Quando falamos dos chineses, notamos que houve um crescimento significativo e a escala das suas capacidades é realmente impressionante, especialmente na última década", referiu o sargento-chefe da Força Espacial Ronald Lerch, vice-chefe de operações espaciais de inteligência, num fórum de política espacial da Aerospace Corporation.

Lerch disse ainda que a Força Espacial dos EUA, à luz dos avanços da China, está num ponto de inflexão, mudando de uma postura de mero suporte à infraestrutura de satélite para se tornar numa força de combate que deve ser capaz de proteger e defender os interesses dos Estados Unidos no espaço.

Também o general Michael Guetlein, vice-chefe de operações espaciais, interpreta a nova realidade e descreve as recentes atividades da China com satélites como um "combate aéreo".

Embora a comparação com um atual combate aéreo possa parecer exagerada, para máquinas [satélites] que flutuam lentamente no vácuo do espaço, a escolha das palavras, por parte de Guetlein, traduzem fundamentalmente como os militares vêem agora a ameaça que flutua sobre as nossas cabeças.
Um bailado espacial
A temática pareçe recente, mas os olhares mais atentos das autoridades espaciais norte-americanas, entre o final de 2023 e dezembro de 2024, detetaram cinco satélites chineses a efetuar um conjunto de manobras, que analistas espaciais classificaram de “inacreditáveis” devido ao número de satélites envolvidos, bem como à complexidade dos movimentos que resultavam de tais manobras.

Sob a mira estavam ao total cinco satélites chineses - Shiyan-24A/B/C, lançados em 2023, e dois satélites Shijian-6 05A/B, lançados em 2021.

Os satélites realizaram sobrevoos coordenados, operações de proximidade com menos de um quilómetro de separação entre eles e manobras de “três corpos”, para surpresa da comunidade de políticas espaciais.

A COMSPOC esteve a avaliar operações recentes de aproximação  realizadas pelos satélites chineses Shijian-21 e Shijian-25, em junho de 2025. Crédito: COMSPOC

A surpresa e a credibilidade das manobras, dentro da comunidade, eram ainda maiores, visto que os satélites utilizados eram de fases de evolução tecnológica diferentes [hardware]. “Eram dois conjuntos de satélites que conseguiram emparelhar-se”, referiu Eric Eiler, engenheiro sénior de consciencialização do domínio espacial da LeoLabs, empresa comercial que seguiu a atividade. “O que eles mostraram é bastante impressionante”.

Manobras que as potências espaciais atuais, principalmente a norte-americana e a europeia, em conjunto com empresas privadas, procuram obter e construir para a manutenção de satélites ou remoção de detritos. Tecnologia que também pode ser adaptada e reprogramada para inspecionar, desativar ou destruir satélites, em caso de conflito armado. Daí a preocupação.

E o mais importante, explica Eiler, é que a capacidade da China já demonstra a capacidade de conduzir operações de aproximação e proximidade precisas e continua a evoluir rapidamente.

O facto de as empresas comerciais espaciais poderem observar esses comportamentos, já é significativo por si só, refere o engenheiro da LeoLabs. "A vantagem de ser um provedor de inteligência comercial e não confidencial é que nossos dados podem ser compartilhados com mais liberdade", mas isso não é suficiente para anular a concorrência, a vantagem e a supremacia chinesa no espaço.

Para já, informa Eiler, o melhor que se está conseguir é detetar e interpretar manobras apresentadas por estes satélites.

Entre abril e dezembro de 2024, três satélites chineses (Shiyan 24 C 01, 02 e 03) realizaram inúmeras aproximações a Shijan-6 05A. Em abril de 2024 foram detetadas algumas das manobras mais desafiadoras e complexas. Essas atividades estão anotadas no "gráfico em cascata", que exibe o faseamento desses quatro satélites. Esta representação ilustra duas atividades RPO simultâneas entre SY-24C 01 com 02 e SY-24C 03 com SJ-6 05A. Eventualmente, no final de abril, SY-24C 03 transferiu suas atividades coordenadas de SJ-6 05A para SY-24C 01. Crédito: LeoLabs

Neste contexto, o recurso à inteligência artificial, por parte das empresas que estão a rastrear o espaço, é fundamental, adicionando desta forma software e mais sensores para melhorar a precisão dos dados recolhidos. O engenheiro da LeoLabs afirma que, desta forma, "os clientes militares podem utilizar estas ferramentas digitais em ambientes confidenciais e combiná-los com as próprias informações, sem revelar fontes ou métodos", explica.

As novas ferramentas digitais ajudam os analistas a identificar comportamentos incomuns, sinalizar anomalias e reduzir o tempo necessário para transformar dados brutos em inteligência acionável.

Algo cada vez mais dificil de realizar, sendo que a órbita terrestre baixa (LEO), está suprapovoada, com satélites a orbitar o planeta a cada 90 minutos. E cada segundo conta.

“Precisamos de manter esses prazos na ordem de minutos”, disse Eiler. “Se permitirmos que se estendam por horas ou dias, pode ser tarde demais num cenário de conflito.”

Com a introdução da IA nesta “batalha invisível”, a ferramenta digital pode detectar os satélites em manobra e prever os próximos passos.

Quanto mais rápido os analistas conseguirem obter as informações desses alvos em movimento, melhor poderão avaliar a intenção dos mesmos. E se estes movimentos não forem sistematicamente rastreados, o(s) alvo(s) em questão podem “desaparecer” da trajetória prevista — algo que os líderes militares dos EUA não podem permitir durante uma crise.

"Estamos a tentar encontrar aquela agulha no palheiro", disse Eric Eiler. "Queremos passar estas informações para a Força Espacial a tempo de esta fazer algo com elas".
Avanço chinês em órbitas geoestácionárias “acende alertas”
Como já referido, a China tem conduzido vários testes com satélites no espaço. Entre estes, o reabastecimento e a acoplagem em órbita geoestacionária (GEO), a cerca de 35.766 quilómetros da Terra.

As manobras envolveram os satélites Shijian-21, que serviu para rebocar um satélite inativo para uma órbita-cemitério em 2022, e Shijian-25, lançado em janeiro de 2025 como demonstrador tecnológico. De acordo com observações da COMSPOC – empresa fornecedora de software de reconhecimento de domínio espacial, que acompanhou os dois satélites chineses -, ambos os objetos estiveram a cerca de um quilómetro no dia 13 de junho e voltaram realizar manobras no dia 30 de junho, possivelmente para um reabastecimento. Se confirmado, este será o primeiro reabastecimento orbital da China em GEO.

Créditos: @COMSPOC_OPS

Manobras que foram presenciadas pelos satélites de vigilância norte-americanos que estavam nas proximidades — USA 270 e 271 — e que demonstram a preocupação com possíveis aplicações militares da tecnologia, que tem um evidente caráter de uso dual: civil e militar.

Os especialistas alertam mesmo para um eventual aumento das capacidades táticas da China em órbita, incluindo potenciais operações antissatélite.

A tecnologia de reboque e reabastecimento permite operações espaciais comerciais e civis, mas também fortalece as capacidades do Exército de Libertação Popular em órbita: “A China é muito boa em uso duplo. Naturalmente, o Departamento de Defesa percebe-o e isto faz com que as pessoas fiquem arrepiadas”.

Empresas como a Slingshot Aerospace e a ExoAnalytic Solutions estão a desenvolver algoritmos e sistemas para detetar comportamentos anómalos e rastrear manobras rápidas. A infraestrutura tradicional, como a Rede de Vigilância Espacial dos Estados unidos, não serve para o efeito, pois não foi concebida para lidar com o atual ambiente orbital dinâmico.
Órbitas cada vez mais cheias: um risco crescente
Além destas manobras “suspeitas”, a Força Espacial norte-americana (Space Force) está também a observar os esforços da China na implantação de enormes constelações de satélites LEO.

Uma das redes chinesas que se conhece inclui 14 mil satélites para competir com o Starlink, da SpaceX. Mas há uma outra, que combina um esforço liderado pelo Governo chines, com 13 mil satélites, que visa expandir a presença de comunicações estratégicas da China.

À medida que a população de satélites cresce, também aumenta o risco de a China ocultar sistemas de vigilância ou antissatélites entre naves espaciais de aparência inofensiva.

“Não é apenas o que eles podem fazer, mas o que eles podem fazer enquanto não estamos a olhar”, fez notar Eiler.

Também Belinda Marchand, diretora científica do Slingshot, refere que “é difícil saber exatamente qual é o objetivo deles. Mas podemos especular — e podemos reduzir o tempo que leva para alertar os decisores”.

Para monitorizar um ambiente tão dinâmico, as autoridades norte-americanas dizem que precisarão de integrar sensores comerciais e governamentais numa rede coesa, aproveitando os pontos fortes de cada sector.

Norbert Pouzin, analista sénior da empresa francesa Aldoria, afirmou que as manobras orbitais da China refletem uma mudança de postura estratégica. Assim como os EUA, a China parece estar a integrar o "controle do domínio orbital" na sua doutrina de defesa mais ampla.“A China está a aprimorar a capacidade de rastrear, aproximar, desorientar ou neutralizar um satélite adversário. Trata-se de controle espacial”.

Também Brien Flewelling, diretor de desenvolvimento de programas estratégicos da ExoAnalytic, explica que os operadores de lançamentos espaciais norte-americanos estão a ficar preocupados sobre como as manobras da China podem impactar as janelas de lançamento de missões espaciais.

Os satélites da China também estão a realizar mudanças de velocidade anormalmente grandes, disse Flewelling, "cerca de 50 a 100 vezes maiores do que a manobra média dos satélites GEO". Estas operações exigem bastante combustível e planeamento e não são medidas típicas de manutenção.

Se um lançamento é cada vez mais difícil, devido ao cada vez maior número de satélites no espaço, com estas manobras “invisíveis” de satélites chineses as janelas de oportunidade ficam ainda mais difíceis, se não impossíveis, devido a colisões.

"Eles estão a mostrar o que sabem fazer", disse Flewelling. "E todos estão a prestar atenção." Resta saber se, nesta corrida, os mais atrasados vão conseguir apanhar “a lebre espacial”.
Tópicos
PUB